23 de abr. de 2011

Hinos Cristocêntricos X Hinos Antropocêntricos


Há algum tempo tenho percebido uma enorme inconsistência do louvor no culto da Igreja na qual congrego. Desde já advirto, sou assembleiano e esse artigo não surge como fruto de minha rejeição à Assembleia de Deus. Já passei do tempo infante, no qual costumava entrincheirar as denominações e diferenciá-las por meio das placas denominacionais que elas levantam, agigantando as triviais divergências que temos em detrimento da convergência que consiste no cerne da mensagem. Estou lá, não porque eu seja um veemente defensor do pentecostalismo confesso, e sim porque sou cristão e o seria em qualquer outra denominação protestante evangélica. Estou lá porque estou lá e ponto.

A liturgia do culto, regida pela tradição assembleiana, exige que os cultos sejam preludiados pelos belos hinos da harpa cristã. Até aqui não há problema. Muito pelo contrário. Os hinos da harpa são belos, cujas letras traduzem verdades bíblicas, ao ponto de que, se cantássemos tais letras com autenticidade e fervor eu não seria alvejado com o inquietante sentimento que me destinou a escrever esse artigo. O hino 169 por si só seria suficiente para embasar o que disse:

“Longe do Senhor andava, no caminho de horror, Nem minha alma desejava nem queria seu amor. Oh porque Jesus me ama, eu não posso explicar, Mas, a ti também te chama, Pois deseja te salvar!.."

Iniciamos nossa devoção comunitária por meio de hinos revestidos com letras fiéis ao evangelho. São hinos pelos quais nós enobrecemos a obra de Deus feita por nós. “Rude cruz se erigiu, Dela o dia fugiu, Como emblema de vergonha e dor; Mas contemplo esta cruz. Porque nela Jesus Deu a vida por mim, pecador.” [291]. Ou ainda, louvamos a Deus pelos meios da graça com os quais glorificamos a Deus quando neles participamos, “Alvo mais que a neve. Sim nesse sangue lavado, mais alvo que a neve serei” [39]. Quando louvamos a Deus com os hinos da harpa, parecemos ser um povo plenamente conhecedor dos mistérios de Deus revelados a nós pelo evangelho. Cantamos nossa depravação pecaminosa: “longe do senhor andava no caminho de horror” [169] “Oh quão cego andei e perdido vaguei, longe, longe do meu Salvador” [15]. Engrandecemos a Deus por sua intervenção graciosa e redentora, mediada por seu sangue: “Ele me abriu a porta, E me reconciliou, Por Seu sangue derramado; para Deus me consagrou” [456]. Existe outro do qual emerge uma verdade tão biblicamente centrada que parece não ser um hino regularmente cantado por uma Igreja cuja identidade cristocêntrica está gravemente comprometida: “Sim, eu amo a mensagem da cruz até morrer eu a vou proclamar; Levarei eu também minha cruz até por uma coroa trocar.” [291]. Hinos com os quais nos prostramos perante o evangelho da cruz: “Quando Deus, o Sangue vir, Que Jesus já verteu, Passará sem te ferir, No Egito assim sucedeu.” [255]. Faltar-me-ia espaço para examinar todos os hinos pelos quais a Assembleia de Deus diz engajar-se com um louvor centrado no evangelho, dentre os quais, o que se segue é muito cantado: “Deus amou de tal maneira Este mundo sofredor. Que à humanidade inteira, Deus Seu Filho para Salvador” [227], e também esse: “Tens tu lido a história da dura cruz, Na qual Jesus morreu, Desfazendo as trevas raiou a luz, Manando o sangue Seu? [350] E alguns dos quais escritos por puritanos como Issac watts, como o que se segue: “Ao ver morrer na rude cruz, Em dor e angústia meu Jesus, Compreendo ser um pecador, E meu orgulho sem valor” [540].

Existem também aqueles hinos com os quais Deus é adorado por sua grandeza, soberania e majestade, como esse: “Adorai o Rei do Universo! Terra e céus cantem o Seu louvor! Todo o ser no grande mar submerso Louve ao Dominador!” [124], ou esse: “Muito além do nosso entendimento, Alto mais que todo o pensamento, Glorioso em seu sublime intento, É o amor de Deus, sem par” [396].

São belos hinos com letras claramente esposadas nas Escrituras, revelando o temor daqueles homens que estiveram por trás de suas composições, registrando-os para Glória de Deus. Contudo, quando o culto se segue, o momento que sucede ao dos hinos da harpa nega-lhe por completo a essência destes, com hinos superficiais, ridículos, inescrupulosos, antropocêntricos, vazios das Escrituras, estritamente comprometidos com a experiência pessoal, e nada com o evangelho e a Glória de Deus. São hinos que enobrecem o ser humano, acalentando-o pelas lutas como se fossem deuses, explicando-o que é necessário passar por elas devido ao quanto ele é por si especial, razão pela qual Deus, o ator coadjuvante da história – que não o era, quando os hinos da harpa eram cantados - vai aparecer a qualquer momento para resolver todos os problemas para a gloria do homem. Hinos, se é que podemos chamá-los assim, que superestimam o que o homem pode fazer movido por uma compreensão tal, com a qual tais hinos estão comprometidos em fazê-lo entender, de que ele não nasceu para isso, subestimando o que Deus fez por nós, mesmo que tal doutrina costure as páginas das Escrituras, sem que haja espaço nelas para embasar essa saga humana, que consiste numa frenética corrida rumo à conquista, cujo topo não se vê Cristo.

São canções produzidas no forno do pragmatismo, escritas para atender aos cristãos cuja compreensão de vida restringe-se a benção e vitórias. São composições oportunistas, com as quais seus compositores buscam se adequar ao momento, indo de encontro às circunstancias de seus ouvintes, vitimando-os, sendo esses, imaturos demais ao ponto de não compreenderem as provações do ponto de vista do Evangelho, tornando-os seus fiéis seguidores. 

Com hinos dessa estirpe, os cultos são geralmente conduzidos por uma equivocada compreensão de devoção, invertendo as coisas, renunciando a Deus e seu evangelho, por um anseio descontrolado de ser mais do que é, de ter mais do que tem, de conquistar mais do que já possui, tão somente pela justificativa de que somos vencedores, sem que Aquele cuja vitória conquistou por nós na cruz, seja citado, fazendo-nos vencedores pelos nossos próprios esforços, tornando tal letra pertencente a qualquer crença, menos cristã.

Os “hinos” de grande parte dos cantores pentecostais sempre são comprometidos com a saga humana, e nunca com a história da redenção. O Evangelho que consiste na operação resgate efetuada por Deus é reduzido a caminhada do crente rumo à felicidade e à satisfação pessoal. Tais hinos, estrategicamente escritos, sempre iniciam com a situação na qual o homem foi confinado, complexando-o, preparando o terreno para o “show de promessas”; e o que se segue são deploráveis argumentos persuasivos pelos quais o cantor procura reanimá-lo ao lugar de vencedor e por fim fazê-lo compreender que ele nasceu é para vencer os seus gigantes e apropriar-se com autoridade de sua desejada vitória, que não consiste na justificação pela fé, revelada à nos pela graça.  

Submetendo tais hinos a uma séria avaliação, não nos parece haver algo de muito contraditório com os louvores que elencam no culto pentecostal?

Iniciamos com hinos cujas letras entronizam a obra de Deus e terminamos com canções que celebram e enobrecem a conquista e o esforço humano num contexto completamente estranho ao do evangelho, com guerras, gigantes, inimigos, lutas, banquete, ao invés de pecado, violação das leis de Deus, juízo, graça, sangue e redenção.

Com os hinos da harpa louvamos a Deus pelo que ele propôs fazer por nós, movido por sua misericórdia, hinos saturados das verdades bíblicas, nas quais não há espaço para méritos e aplicações humanas. São verdades que se concentram no ser de Deus e sua obra, não havendo lugar para correspondência humana, pela qual uma suposta participação de nossa parte pudesse ser vindicada por quem sabe uma segunda estrofe inventada e arremedada num belo hino, de cunho moralista e meritório.

Mas, de repente, da Glória e do louvor a Deus, decaímos no precipício da glória humana forjada no coração enganador [Jr 17.9], no qual os anseios do homem são sordidamente vertidos com letras vazias de Deus, e recheadas do logro fariseu que ruma ao templo na hora da oração, disposto a esbanjar sua intrínseca capacidade de fazer algo santo para facilitar as coisas para Deus [Lc 18.1-14]. Da história da redenção, cuja sina consiste no Cristo e Este crucificado [1 Co 2.1,2], muito bem cantada no prelúdio de nossos cultos, nos vemos agora, cantando músicas puramente mercantilistas, forjadas da pueril compreensão do “uma mão lava outra”, banindo Deus de sua proeminência, por meio de letras tão anti-bíblicas, ao ponto de não ser possível aceitar a triste e indigesta alegação de uma Igreja que diz louvar a Deus pela Glória da cruz, ao mesmo tempo em que se rende ao abominável pragmatismo, por meio do qual busca sua própria gloria e conquista! Se fosse possível de uma única fonte jorrar água doce e amarga, compreenderíamos, mas não é possível, tal como não é possível a um coração glorificar a obra de Deus ao mesmo tempo em que busca no trono Dele, um lugar para se sentar e acomodar sua autorretidão.

Tais hinos, por meio de uma completa indiferença ao que Cristo fez por nós, conclamam o crente a fazer algo por si mesmo, na ânsia de receber uma experiência pessoal como fruto do labor dispensado. Os que anseiam cantar tais hinos não se satisfazem em cantar a verdade das Escrituras. A História da redenção não lhes-é suficiente nem palatável, razão pela qual incendeiam seus cultos com um fogo estranho, por meio do qual enganam os incautos a se sentirem superespirituais, contudo, estes, frente às provações da vida, logo se desvanecem, denunciando-os, de que construíram sua casa sobre a areia e não sobre a verdade do Cristo, revelado nas Escrituras. Em consequencia dessa adulteração, a vida do cristão é descaracterizada da vida de Cristo, quem por nós sofreu, deixando-nos o exemplo e a promessa de que por ele e para sua Glória também sofreremos [2 Pe 2.21], para ser inutilmente igualada a uma vida de super-heróis, na qual, por motivos sempre errados e contrários ao evangelho, temos de vencer.

Não creio que cristãos têm cantado tais hinos manifestando, proporcionalmente, a mesma devoção entre eles. Se os hinos da harpa são cantados, refletindo genuinamente a fé que professam, não deveria haver espaço para hinos, cujo conteúdo e propósito contradizem a verdade que dizem crer. Em contrapartida, se os hinos mercantilistas são cantados, crendo em sua proposta e conteúdo, então dizer que nos seja possível alardear em outros cânticos verdades bíblicas, como a da Redenção é tentar maquiar uma hipocrisia percebida a distância. Não gostaria de justificar isso alegando que tais hinos verdadeiramente bíblicos foram compostos por homens que se distavam desse movimento novo que desentroniza Deus de sua obra, e os hinos mercantilistas nada são, senão a identidade de uma igreja mercantilista, embora isso seja  indiscutivelmente verdadeiro. Entretanto, sei que há servos de Deus que entendem a premente necessidade de abandonarmos esse culto a criatura e nos arrependermos de nossa rebelião. Não estou propondo um retorno à fé por uma solução paliativa, que seria apenas cantarmos hinos cristocêntricos. O que descrevi são efeitos de uma causa já abraçada. A solução não é simplesmente mudarmos a predileção de nossas canções, e sim nos arrependermos e crermos no evangelho, e os hinos serão consequencia de uma transformação genuína executada por Deus.

Essa triste verdade não pode ser escondida por alguém que nasceu nessa igreja, como eu. É triste ver cultos comprometidos com bençãos, campanhas, profetas que só sabem revelar mentiras, ao invés de se comprometerem com a verdade e com a Glória do Soberano Deus. O culto se transformou num momento de êxtase ao invés de uma devoção comunitária genuína pelo que Deus já fez por nós, resgatando-nos por sua graça, quando merecíamos ser condenados por sua justiça. Que Deus desperte seus servos dessa denominação do engano ao qual foram aprisionados, antes que a linha divisória entre o famigerado neo-pentecostalimo e os renovados, que já é tênue, inexista de uma vez por todas.

Graça e Paz
Mizael Reis